Dom Paulo DOMICIANO, OSB
O Mistério da Transfiguração está em estreita relação com o Mistério Pascal de Jesus. No Evangelho, este episódio se situa após o anúncio da Paixão, feito aos discípulos para, pedagogicamente, animar neles a esperança da Ressurreição.
Este Evangelho é tradicionalmente proclamado no segundo domingo da Quaresma, fazendo um contraponto com o Evangelho da tentação, do primeiro domingo da Quaresma. Assim, passamos do abismo de pedras ao monte da luz; do combate na tentação à transfiguração. Deste modo, os dois primeiros domingos da Quaresma nos oferecem uma síntese de todo o itinerário pascal, que consiste em evangelizar as zonas de sombra e de dureza presentes em nossa vida e em liberar toda a luz escondida dentro de nós.
Esta mesma dinâmica permeia o capítulo 49 da Santa Regra, Da observância da Quaresma, onde Nosso Pai São Bento nos diz que a vida do monge deveria ser, em todo tempo, uma observância de Quaresma (cf. RB 49). Ao mesmo tempo, ele nos exorta a viver este tempo “na alegria do desejo espiritual”. Ou seja, a aspereza evocada pelo deserto, mas também pela subida da montanha são iluminadas pela alegre luz do Espírito; esta mesma luz que nos habita e que precisa se manifestar através da opacidade de nossa existência.
Lembremos que, como nos declara Jesus, somos a luz do mundo. Contemplando a face luminosa de Jesus somos transfigurados e a luz em nós escondida se manifesta; como num espelho, no dizer de São Paulo, somos transfigurados na imagem daquele que contemplamos (cf. IICor 3,18).
Aquele que se decide a entrar com Jesus na aventura do deserto, no caminho que conduz à cruz, é convidado a acompanhar os três discípulos – Pedro, Tiago e João – nesta escalada da montanha. Subir a montanha, na tradição espiritual e, particularmente, na tradição monástica, tem esse caráter de purificação simbolizado pelo deserto. Seja em uma viagem através do deserto ou a subida de uma montanha, precisamos abandonar tudo o que não é essencial, caso contrário, não é possível progredir na caminhada.
Com isso, devemos nos perguntar: do que estamos carregados? O que nos pesa sobre os ombros, dificultando ou mesmo impedindo nossa caminhada? Quais são meus apegos, meus vícios, meus medos, minhas futilidades? Quais são os sentimentos ou as situações que se tornaram ao longo da vida um peso, que endureceram meu coração? Enfim, é com tudo isso que tentamos seguir Jesus e subir o monte da transfiguração. Mas como disse, não é possível avançar nessa escalada com tantos pesos sobre os ombros…
Nesta viagem só existe um caminho possível: aquele trilhado pelo próprio Jesus, que é a via do despojamento, a via da cruz. Ao longo do caminho precisamos ir nos despojando de tudo o que não é essencial… tudo aquilo que fomos acumulando e que tantas vezes ocuparam até mesmo o lugar de Deus.
A consequência do despojamento exigido pela subida é a contemplação de uma nova luz. No alto do Monte, diante de Jesus transfigurado, os olhos dos discípulos se abrem e se tornam capazes de ver, de contemplar o Senhor em seu esplendor. Eles podem ver, como num flash, a realidade mais íntima da natureza divina de Jesus, o esplendor que se manifestará depois da cruz e da morte e que se destina a cada discípulo que, por sua vez, aceitar tomar a sua cruz e o seguir.
Mas como disse, a capacidade dos discípulos de contemplar a transfiguração acontece como um flash e não está completa. Eles ainda não entendem bem essa dinâmica de transformação proposta por Jesus, que passa inevitavelmente pelo caminho da cruz. Por isso da nuvem que os cobre, símbolo do Espírito, a voz do Pai se faz ouvir: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!”. Esta é a direção: o processo de transfiguração, de conversão, na vida dos discípulos, depende da escuta atenta da Palavra do Filho. E assim, de flash e flash, ou “de glória em glória”, como diz São Paulo, também nós vamos sendo iluminados e transfigurados (cf. IICor 3,18).
Sem dúvida, esta palavra do Pai: “Escutai-o”, nos remete ao fundamento principal da espiritualidade beneditina, proposto por São Bento na início Regra: “Escuta, filho”. Nosso progresso na vida monástica, na subida do monte, consiste essencialmente em buscar ouvir a Palavra de Deus. E isso se dá de modo privilegiado em nossa lectio divina. Não é à toa que São Lucas precisa que a transfiguração de Jesus se dá “enquanto ele rezava”. São Bento intuiu muito bem que o monge só pode se converter, ou seja, chegar à transfiguração, se ele se manter atento à voz da Escritura, que todos os dias nos desperta dizendo: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações” (cf. Pról. RB 8ss).
Peçamos ao Senhor a coragem de nos despojarmos para segui-lo nesta subida do monte e a docilidade à sua voz, para que nossos olhos e nosso coração se abram para receber do Espírito a vida nova, a luz nova da Transfiguração, a luz que não se apaga.