Mosteiro da Transfiguração, Santa Rosa-RS
Festa do Batismo do Senhor – Ano A
Dom Martinho do Carmo OSB
Homilia proferida a 12 de janeiro de 2020
Is 42,1-4.6-7
Sl 28
At 10,34-38
Mt 3,13-17
Caros irmãos e irmãs
JESUS vai em direção a João, um homem entre homens, misturado com essa multidão que aflui para o Rio Jordão. Jesus vai até João a fim de ser batizado, seguindo aquelas pessoas que faziam penitência. Mas João quer impedi-lo: “Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (Mt 3,14) De fato, por que esse batismo de água do qual Jesus não tem necessidade? Ora, é verdade que ele não tinha nada a ser lavado, nada a ser expiado, uma vez que n’Ele não havia corrupção nem pecado. Ele já era santo, inocente e absolutamente puro. Já há em sua alma humana uma beleza, um amor, uma santidade que faz dele a mais maravilhosa oferenda que se pode fazer ao Pai. Por que então entrar nas águas do Jordão, visto que ele é o Filho de Deus desde a eternidade? Ele já era o Filho de Deus quando, entrando no seio da Virgem, assumiu nossa carne para tornar-se também Filho do homem. E mesmo iniciando sua vida humana, ele certamente já ouvia em seu coração a palavra do Pai: “Este é o meu Filho amado”. Então, por que essa voz vinda do céu? Por que essa descida do Espírito de Deus em forma de pomba, se Jesus já é cheio do Espírito Santo, do Espírito de amor, o Espírito de filiação que sempre sussurra nele “Abba, meu Pai!”. Mesmo assim, Jesus entra hoje nas águas batismais. Sem dúvida, deve haver um real sentido nessa abordagem, e precisamos esclarecer isso.
Em primeiro lugar, quem é esse Jesus? Ele não é apenas um de nós. Nenhum de nós carrega em si, como ele, toda a humanidade. Sim, em seu ser de Deus-feito-homem, em seu coração, em sua alma, ele sustenta toda a humanidade. E ainda mais, ele carrega sobre si o peso de nossas faltas. “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” proclama João Batista (Jo 1,29). Não é por si mesmo que Jesus desce às águas do Jordão, mas por nós. É por nós que ele faz esse ato de humildade. É por nós que ele quis dar o exemplo do arrependimento. “Deixa como está, porque nós devemos cumprir toda a justiça!” (Mt 3,15). Portanto, se vós me perguntais por que Jesus entra no Jordão? Respondo-vos: porque ele entra com a nossa humanidade que ele carrega em si: entra com nossas fraquezas, com nossos pecados, com nosso vazio, com a ausência de Deus em nós, com nossa necessidade de Deus. Ele carrega dentro de si tudo o que somos. E quando se ouve a voz dizendo: “Este é o meu Filho amado”, é para todos nós que se dirige essa voz. Se ele é “nós”, nós somos “ele”. “Este é o meu Filho amado”, é o que Deus diz a todo ser humano. E quando o Espírito Santo desce sobre Jesus, é sobre a humanidade que o Espírito desce, afim de que possamos clamar “Abba, Pai”, como o próprio Jesus. São Cirilo de Alexandria escreve que “Cristo não recebeu o Espírito Santo para si mesmo, mas para que nós o recebêssemos nele”[1]. Os céus fechados pela falta do primeiro Adão são novamente abertos pela manifestação do Novo Adão. Lavando-nos desta forma e recebendo por nós o Espírito, ele restaura em nós a imagem e a semelhança. E tornando-se o primogênito de toda a criaturas, ele, o Criador, faz de nós uma nova criação (2 Cor 5,17). Sim, creiamos irmãos e irmãs, somos nós mais do que ele, nós que por Cristo, com Cristo e em Cristo fomos lavados no Jordão, nas águas do rio mais baixo do mundo.
Foi isso que aconteceu no dia do nosso batismo. Fomos lavados de toda a corrupção, de todo o pecado. Mas, mais do que isso, tudo o que era da ordem da morte, no sentido mais profundo da palavra, foi abolido. Pois o batismo de João era apenas um batismo de penitência. Mas o batismo no Espírito, que nós recebemos, mergulhou-nos na morte de Cristo e nos reergueu, ressuscitados com ele! Batizados, nós já morremos a morte de Cristo, e estamos vivos com Ele por toda a eternidade. “Reconhece, ó cristão, tua dignidade”, disse São Leão Magno[2]. Irmãos e irmãs, reconheçamos o que somos, e não o que parecemos! Reconhece, meu irmão, minha irmã, descobre em ti mesmo essa vida divina, esse rio de água viva que está em ti! Reconhece, descobre em ti esse poder que está em ti um tanto adormecido por causa de tuas faltas! Vós sois habitados pelo Espírito Santo, o Espírito de Jesus, o Espírito do Filho, o Espírito que fez um morto voltar à vida, o Espírito que espalha sobre a terra paz, alegria, luz. Irmãos e irmãs, devemos mergulhar todos os dias nas águas do nosso batismo por meio da fé. Devemos tomar consciência e, mais do que isso, aderir ao que nos foi dado e que permanece conosco, embora tenha necessidade de se desenvolver e florescer todos os dias. “Não descuides do dom que há em ti e que te foi dado por imposição de mãos!” (1Tim 4,14). Este cuidado não é passivo. O dom de Deus não nos dispensa de uma caminhada de conversão. O que o Espírito Santo coloca em nós é o poder de agir. Se o Espírito Santo é o dom de Deus, o dom que o Espírito nos faz é o dom de doar-se: ele nos ensina a dar como Deus sabe dar. Mas dar o que? Dar a vida, dar-se a si mesmo por inteiro. Porque nosso Deus doou-se a nós em Jesus Cristo, nós também podemos, em reciprocidade, nos doar a ele no mesmo movimento, no mesmo sopro, no mesmo Espírito. Reconheçamos como fazia Inácio de Antioquia, quando disse: “Dentro de mim há uma água viva que murmura e diz: ‘Vem para o Pai’”[3]. Essa voz que nos chama para o Pai, é a mesma voz que nos chama a sermos melhores, a viver na verdade, na justiça, no amor, no perdão, a nos tornarmos cada vez mais efetivamente filhos de Deus, a seguir as inspirações do Espírito Santo. Não, nós nunca seremos dispensados de dar esse passo: “Levanta-te e anda!” “Vem e segue-me!” “Torna-te aquilo que tu és!”
[1] Cirilo de Alexandria, Comentário sobre o Evangelho de São João, Lib. 5, cap. 2: PG 73,754. Disponível em <https://liturgiadashoras.online/natal/quinta_epifania>, acesso a 10/01/2020.
[2] Léon le Grand, Sermons, SC 22, Cerf, Paris, 1964, pp. 72-74.
[3] Ignace d’Antioche, Lettre aux chrétiens de Rome, VII,2. Disponível em <http://www.abbayes.fr/lectio/peres/ignace_romains.htm>, acesso a 10/01/2020.