“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!”

Homilia (Mt 17, 1-9)

D. Paulo DOMICIANO,OSB

A proposta do combate e da conversão do deserto, como ouvimos no último domingo, vem acompanhada pelo convite ao despojamento, à desinstalação de nosso conforto, de nosso comodismo. Este tema é retomado pela liturgia de hoje a partir da leitura do livro do Gênesis, onde o Senhor pede à Abrão para sair de sua terra:  “Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai, e vai para a terra que eu te vou mostrar”. Nosso progresso humano e espiritual dependem desta atitude de desinstalação e confiança para podermos crescer e acolher o que Deus tem reservado para nós.

O despojamento pedido por Deus não visa o nosso desamparo, mas, na realidade, a nossa libertação das amarras que nós mesmos nos impomos, nos tornando disponíveis para receber o amparo de Deus, como canta o Salmo de hoje: “No Senhor nós esperamos confiantes, porque ele é nosso auxílio e proteção!”. Os olhos do Senhor são atraídos para aquele que abre mão de suas seguranças puramente humanas ou mundanas, como ainda canta o salmista: “o Senhor pousa o olhar sobre os que o temem, e que confiam esperando em seu amor”.

Assim como o deserto nos impele ao despojamento, como meditamos no primeiro domingo deste nosso percurso quaresmal, a subida da montanha com Jesus, neste segundo domingo, nos convida também a deixarmos para trás o que é supérfluo, o que nos pesa, inclusive sentimentos inúteis, como nossos rancores, mágoas, frustrações… nossas muitas preocupações exageradas com a vida, com o futuro, com a saúde, com nossos filhos (aqui abro uma observação: nunca estivemos tão preocupados com os filhos e com os netos como somos hoje, no entanto, nunca tivemos uma geração de crianças e jovens tão problemática… tão dependente, tão imatura; nosso cuidado com os filhos é de fato cuidado ou é apego, que impede o outro de se desenvolver de modo saudável? Vejo pais e também avós que deixam de viver para garantir “bem-estar” para os filhos… mas isso muitas vezes não é cuidado, zelo, mas posse, apego, que nos faz esquecer de cuidar da própria vida, nos separa até de Deus). Se não nos livramos desses pesos inúteis não seremos capazes de seguir adiante com Jesus. A primeira questão é esta: O que tenho carregado inutilmente neste caminho e que preciso me livrar? Mas a questão que me parece mais profunda é: Afinal, o que estou buscando neste percurso, às vezes tão exigente?

À medida que vamos nos despindo de nossas falsas seguranças e de nossas falsas necessidades, que vamos abrindo mão dos pesos que carregamos inutilmente, vamos também assumindo a nossa fragilidade e a nossa necessidade mais profunda, que é estar em comunhão com Deus, que é nossa origem, e com as pessoas. Ou seja, vamos nos dando conta de que não somos autossuficientes e que precisamos de Deus e dos outros para prosseguir nosso caminho. Mas não de modo utilitário… descobrimos que é nessa comunhão que consiste a nossa felicidade e o sentido de nossa existência.

A antífona que cantamos no início desta liturgia, com o salmo 26, dá voz a esse anseio profundo que trazemos em nosso interior: “Meu coração disse: Senhor, buscarei a vossa face. É vossa face, Senhor, que eu procuro, não desvieis de mim o vosso rosto”. Jesus, subindo o monte, porta em seu coração este desejo profundo que todo ser humano tem; em nosso nome Ele sobe em busca da face do Pai. Junto com Pedro, Tiago e João, que não compreendem o mistério da paixão e não estavam conscientes desse mesmo desejo que os habitava, nós, que também somos inconscientes em relação a isso, hoje somos convidados a segui-los para com eles contemplar a face de Cristo transfigurado.

Jesus sobe em busca da face do Pai. Em oposição ao episódio das tentações no deserto, onde o demônio tenta Jesus em relação à sua identidade de filho de Deus – “se és o Filho de Deus” – aqui, Ele é confirmado nesta identidade. É o próprio Pai quem o declara: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado”. Este encontro com Deus é de tal modo apaixonado que toca não só o interior de Jesus, mas todo o seu corpo, que resplandece, rejubila; a angústia do deserto de tentação dá lugar à alegria luminosa do Tabor. A transfiguração é o dom feito a Jesus pelo Pai, no Espírito, como sinal deste amor que os une. Buscando a face do Pai é a face de Jesus que se torna resplandecente, revelando aos discípulos e a nós, que é em sua face que contemplamos a face luminosa do Pai, como Ele declarará a Felipe: “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Do mesmo modo a voz do Pai se faz ouvir e confirma que, quem ouve a voz do Filho, ouve a sua voz: “Escutai-o!”.

De fato, durante a nossa caminhada quaresmal, que se prolonga por todo o ano e diria, mesmo por toda a vida, é a Palavra de Deus que nos é oferecida como alimento, como sinal de discernimento ao logo de todo o caminho. Vale a pena retomarmos a belíssima oração inicial que a Igreja coloca em nossos lábios hoje, suplicando: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória”. Vejam, é a Palavra de Deus que ouvimos, meditamos e buscamos viver, como o Pai nos pede hoje, que nos alimenta para o caminho e que purifica o nosso olhar para que seja um “olhar da fé”, um “olhar transfigurado”, capaz de ver a glória de Deus, capaz de perceber a Luz divina nas realidades de nossa vida, na vida das pessoas que nos rodeiam, e em nós mesmos. Este novo olhar sobre a vida faz brotar em nosso coração a verdadeira alegria, uma alegria que o mundo não pode nos dar e que nos encoraja para seguir em frente, decididamente, sem temer os desafios da cruz de cada dia, certos que a força da ressurreição é nossa garantia.

Vamos renovar hoje o nosso compromisso em cumprir isso que o Pai nos pede ao nos apresentar o seu Filho amado: “Escutai-o”. Temos buscado escutar/ler as Escrituras ao longo da semana? Ou me contento com Palavra de Deus ouvida aos domingos na missa? Ou apenas passo os olhos na “liturgia diária” por desencargo de consciência, para me manter “informado” sobre os textos do dia, como se lesse as manchetes do jornal…? Ao invés de buscarmos visões, revelações e aparições, devemos buscar a verdadeira Luz: Jesus, o filho de Deus, a Palavra que se fez carne e veio habitar em nosso meio. A Palavra que nos fala a cada dia, nos alimentando em nossa caminhada, para que sejamos transformados por ela, transfigurados em novas criaturas.

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