Caros irmãos e irmãs, em todas as culturas, o coração é concebido como o lugar onde residem os sentimentos, a afetividade e o amor. Mas o título da festa de hoje não deve nos enganar: a expressão “Sagrado Coração” muitas vezes evoca mais as práticas piedosas desenvolvidas a partir do séc. XVII do que o mistério que hoje é celebrado. Se esta devoção pôde ter conhecido em certos momentos expressões demasiado românticas e sentimentais, evidenciadas por uma vasta coleção de imagens piedosas de gosto bastante duvidoso, ela é, essencialmente, em sua primeira intuição, a contemplação do amor de Deus para conosco, encarnado em Jesus de Nazaré. É por isso que, já desde a Idade Média, místicos como Gertrudes de Helfta, Catarina de Sena, Matilde, Margarida Alacoque, João-Eudes, desenvolvem uma devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que não é uma devoção a um órgão físico, mas uma devoção ao amor divino vivenciado por Deus feito homem.
O mistério hoje celebrado deve ser crido a partir do que diz a 1ª Carta de São João, a respeito do próprio ser de Deus: “Deus é amor” (4,8). E um amor tão absoluto que se tornou “criador”. Um amor tão afetuoso e compassivo que quis habitar no coração de um homem: Jesus, que a liturgia hoje nos apresenta sob a figura do Bom Pastor. Esta figura era muito familiar ao povo de Israel que já associava a solicitude do Senhor para com o seu povo com o trabalho do pastor que vigia sobre seu rebanho, que o defende contra os perigos, e que busca para ele repouso e alimento, conforme ouvimos na primeira leitura (Ez 34). “Como o pastor, ele apascenta o rebanho, reúne, com a força de seu braço, os cordeiros, e carrega-os no ao colo” (Is 40,11). O coração pulsante de Jesus, esse pastor que partiu para longe a fim de trazer de volta em seus ombros a ovelha perdida, torna-se o abrigo e o repouso de cada um dos perdidos que somos – alguns mais, outros menos distantes, mas todos somos esses “perdidos”. O coração transbordante de Jesus, desejoso de que “não se perca nenhum desses pequeninos” (cf. Jo 6,39), vai até o fim na dinâmica do amor que consiste em entregar-se inteiramente. Sim, o próprio Cristo nos revelou o amor de seu coração durante sua vida terrestre. Ele nos mostra seu coração, transpassado na Cruz, deixando fluir a água e o sangue sobre Maria e o discípulo amado, primícias da Igreja onde a fonte batismal estará sempre aberta, sobre o homem e a mulher, os iniciadores da nova criação. Neste bom Pastor que dá a vida por suas ovelhas, temos a verdade primeira que faz o objeto desta solene celebração: em Jesus, Deus se faz próximo de nós, ele se faz um de nós, e mais ainda – como diz o Concílio Vaticano II – em Jesus, Deus “nos amou com um coração humano” (GS 22). Um coração humano, sim, mas constantemente transbordante, ao mesmo tempo sinal e símbolo do amor divino capaz de aliviar, de curar e preencher todos os corações humanos perdidos, feridos e doentes.
Irmãos e irmãs, para concluir, gostaria de lembrar-vos que, no dia solene do Sagrado Coração de Jesus, a Igreja costuma convidar todos os seus filhos a rezarem pela santificação dos sacerdotes. O sacerdote tem como seu primeiro ofício ser o ministro do amor misericordioso de Deus para todos os seres humanos, para fazê-los conhecer esse amor, e ajuda-los a vivenciá-lo. Este é o sentido do sacramento que eles administram, pois os sacramentos nada mais são do que meios de comunicar o amor que jorra do Coração de Cristo. Celebrando nesta manhã a Eucaristia, voltemo-nos para o coração humano, transpassado, mas glorificado de Jesus Cristo, e, recebendo seu Corpo e seu Sangue como alimento, possamos experimentar em verdade que o seu coração está ardendo de amor por todos os seres humanos, e particularmente por cada um de nós aqui presentes.
Dom Martinho do Carmo OSB