Tempo da Quaresma:
um itinerário de conversão
Dom Paulo DOMICIANO, OSB (02/03/2022)
O Tempo da Quaresma se inicia com um dia de jejum e com a liturgia da Quarta-feira de Cinzas, onde a Igreja convida todos, fiéis e catecúmenos, a tomar o caminho rumo à Páscoa, percorrendo um “itinerário de conversão” através do Batismo e da penitência[1]. Este itinerário, que vai até a Páscoa, é balizado, sobretudo, pela riqueza doutrinal e espiritual oferecidas pela Liturgia da Palavra e a eucologia deste tempo, um dos frutos incomparáveis da renovação litúrgica pós-conciliar.[2]
Os textos propostos pela liturgia da Quarta-feira de Cinzas, como um pórtico de entrada neste caminho, nos introduzem na dinâmica da conversão. Na primeira leitura, o profeta Joel nos exorta: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Jl 2,12-13). Por sua vez, o apóstolo Paulo insistente sobre a necessidade de deixar-nos reconciliar com Deus, aproveitando este tempo favorável: “Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. (…) É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 5,20.6,2).
A partilha, a oração e o jejum, vividos em atitude de interioridade e humildade, como indica o Evangelho (Mt 6,1-6,16-18), são as práticas concretas que devem nos acompanhar ao longo de todo o percurso quaresmal, como armas para um “combate”. De fato, este é o segundo tema característico deste tempo, como podemos perceber na Oração do dia: “Concedei-nos, ó Deus todo-poderoso, iniciar com este dia de jejum o tempo da Quaresma, para que a penitência nos fortaleça no combate contra o espírito do mal”. Contudo, é no primeiro domingo da Quaresma que o tema do combate será mais evidente, com o Evangelho da tentação de Jesus no deserto.
Finalmente, o Salmo 50 é a resposta-súplica que a liturgia coloca nos lábios dos fiéis e catecúmenos, onde o salmista, arrependido diante de Deus, pede um coração purificado, um espírito novo, lábios cheios de louvor. Como uma síntese do itinerário de conversão proposto, o Salmo evoca a disposição à penitência e já aponta com confiança para o júbilo pascal, que se concretizará na vitória de Cristo sobre a morte e o pecado na Ressurreição.
Ao apelo de conversão, que a Palavra de Deus dirige aos que celebram a liturgia, fiéis e catecúmenos, segue-se a sequencia ritual da “bênção e imposição das cinzas”, outrora realizado no início da missa. A reforma litúrgica pós-conciliar foi feliz em deslocar o rito para depois da homilia, fazendo com que esta “liturgia penitencial”, pedagogicamente, catalise a resposta de adesão de todos os que estão dispostos a percorrer o itinerário quaresmal através deste sinal sacramental.
A utilização ritual das cinzas remonta às culturas antigas e a encontramos na tradição bíblica. O simbolismo das cinzas sobre a cabeça ou sobre o corpo aparece em numerosos textos bíblicos como lembrança da morte, da finitude do ser (cf. Gn 18,27; Jó 34,15). As cinzas também eram usadas pelo homem bíblico para manifestar sua dor ou seu luto (cf. Jt 4,16.7,4.9,1; Jr 6,26.25,34). Do mesmo modo, juntamente com o gesto de vestir-se de saco e de cilício, o uso das cinzas era um sinal de penitência (cf. Est 4,1-3; Is 58,5; Dn 9,3; Jn 3,6; Jt 4,16.9,1; Jr 6,26; Mt 11,21; Lc 10,13).[3]
A tradição cristã de impor as cinzas sobre a cabeça, como sinal penitencial, se difunde na Igreja primitiva, quando a Quaresma, por volta do séc. IV, além de ser um período de preparação dos catecúmenos para o Batismo, assume progressivamente um caráter penitencial para todos os fiéis para receber o sacramento da Reconciliação na Quinta-feira Santa. A partir do séc. XI, com o papa Urbano II, o gesto da imposição das cinzas passou para toda a comunidade, lembrando o sentido da conversão.
O uso ritual das cinzas sobre a cabeça faz referência à dimensão da corporeidade, essencial na antropologia cristã, mas tantas vezes negligenciada na prática. Neste rito é o corpo, e não somente o intelecto, que é solicitado para dar a resposta ao apelo de conversão dirigido por Deus. Isso vale para toda a Igreja, que se lembra neste momento que ela é um corpo, não somente uma instituição, um esqueleto, mas um corpo vivo, que sofre e que aspira sempre mais ser plenamente vivo.
Curiosamente, o acento do rito não está propriamente sobre as cinzas como tais, mas no significado de sua imposição, ou seja, a disposição à penitência, como sugere a monição que inicia o rito. Tanto é que, dentre as duas opções de oração para a bênção, a primeira invoca a bênção de Deus diretamente sobre os fiéis: “Derramai a graça da vossa bênção sobre os fiéis que vão receber estas cinzas, para que, prosseguindo na observância da Quaresma, possam celebrar de coração purificado o mistério pascal”; as cinzas que receberão na cabeça, portanto, são símbolo do caminho de purificação que será iniciado.
A segunda opção de oração, apesar de ter outro enfoque, invocando a bênção de Deus sobre as cinzas, também concentra sua atenção sobre o tempo da conversão que é a Quaresma, como itinerário de conversão, que conduz o homem ao seu destino em relação a Deus, ou seja, a “vida nova” com o Ressuscitado: “reconhecendo que somos pó e que ao pó voltaremos, consigamos, pela observância da Quaresma, obter o perdão dos pecados e viver uma vida nova à semelhança do Cristo ressuscitado”.
Depois de pronunciada a bênção e aspersão das cinzas, os fiéis se aproximam para receber as cinzas sobre a cabeça ou a fronte. O ato de pôr-se de pé, sair do próprio lugar e ir até o sacerdote para ser marcado com o sinal sacramental das cinzas expressa em ato, com e no próprio corpo, o reconhecimento público, diante da comunidade dos irmãos, da sua condição de pecador e, ao mesmo tempo, a disposição interior de conversão. Esta caminhada, em seu deslocamento físico no espaço celebrativo, simboliza o próprio itinerário penitencial dos fiéis. Assim, a procissão dos fiéis, acompanhada pelo canto[4], constitui um “ato de fé”[5], e a imposição das cinzas, acompanhada pelas palavras pronunciadas pelo ministro – “Convertei-vos e crede no Evangelho”[6] – condensam ritualmente o itinerário de conversão quaresmal.
De fato, dentro do cenário celebrativo, andar ou caminhar evoca a ideia de sair de um lugar, de desinstalar-se – “Sai da tua terra” (Gn 12,1) – para chegar a um outro lugar. Depois da tomada de consciência sobre a própria condição de pecador, o desinstalar-se e o colocar-se em movimento são sinais do desejo de mudança.[7]
Tal gesto/ação nos remete ao sentido teológico-bíblico dos 40 anos de caminhada de Israel no deserto rumo à Terra Prometida; a travessia do deserto, que conduz da escravidão à libertação e à vida nova. Na liturgia, a caminhada simboliza ainda a peregrinação da Igreja que se dirige para a Jerusalém celeste. Por isso, da “caminhada penitencial” para receber as cinzas, os fiéis passarão a uma segunda, a “caminhada eucarística”, animados pela certeza do perdão e pelo desejo de serem alimentados pelo Corpo e Sangue de Cristo, para que sejam, conforme expressa a Oração pós-comunhão, “ajudados pelo sacramento” recebido.
A riqueza deste itinerário de conversão proposto pela Liturgia da Quarta-feira de Cinzas tem ressonância em todo tempo da Quaresma, sobretudo, através das leituras dominicais. O lecionário nos oferece a possibilidade de três ciclos de leituras, cada um com um acento particular sobre o itinerário quaresmal. O ciclo A está ligado ao caminho dos catecúmenos e, portanto, ao tema da iniciação cristã; o ciclo B é cristocêntrico e sublinha o tema da Aliança reconstituída; finalmente, no ciclo C, sobre o qual nos deteremos a seguir, predominam a dimensão penitencial e o tema da conversão.
O Evangelho do primeiro domingo, comum aos três ciclos, é o da tentação de Jesus no deserto (Lc 4,1-13). No ciclo C, este Evangelho deve ser lido em relação à primeira leitura (Dt 26,4-10) onde Moisés relembra ao povo eleito a profissão de fé no Senhor, que o libertou da escravidão do Egito e o conduziu à Terra Prometida. O combate de Jesus no deserto revela que tal libertação do ser humano é interior, passa pelo caminho da conversão e da confiança sem reservas em Deus.
O segundo domingo da Quaresma propõe o Evangelho da Transfiguração do Senhor (Lc 9,28-36), também comum aos três ciclos, onde os olhos dos discípulos se abrem e eles podem contemplar a glória de Cristo. Podemos dizer que são os olhos dos discípulos que se convertem, que se transfiguram, tornando-se capazes de ver a luz divina do Filho Amado. Como evoca a segunda leitura (Fl 3,17-4,1), aquele que percorre o itinerário da conversão é transfigurado como Cristo.
No terceiro domingo o Evangelho enfatiza a urgência da conversão (Lc 13,1-9), que exige o despojamento e a confiança radical diante de Deus (cf. Ex 3,1-8a.13-15). É Ele o “agricultor” que trabalha em nosso interior e espera ver os frutos que resultam da nossa verdadeira penitência, como mostra a parábola da figueira plantada na vinha.
Os domingos seguintes apresentam exemplos de conversão: no quarto domingo, temos a emblemática parábola do filho pródigo (Lc 15,1-3.11-32). O filho percorre o itinerário da conversão e tem a sua volta selada pelo abraço do Pai e termina com um banquete. Tal conclusão é um ícone do banquete eucarístico oferecido a todo aquele que, como este filho, perdido e reencontrado, trilhou o caminho de volta para a casa paterna e deixou-se reconciliar com o Pai, como expressa São Paulo, no trecho da segunda Carta aos Coríntios, retomado da Quarta-feira de Cinzas (2Cor 5,17-20).
Finalmente, o quinto domingo, deixando o Evangelho de Lucas, apresenta o episódio da mulher adúltera, do Evangelho de João (Jo 8,1-11). O relato coloca o acento sobre o perdão que supõe a conversão: “Vai e de agora em diante não peques mais”. O passado deixa de ser determinante na vida da mulher; o que importa é a novidade do perdão oferecido por Jesus, que faz dela uma nova criatura, como sugerem as leituras deste dia: “Eis que eu farei coisas novas” (Is 43, 19); “esquecendo o que fica para trás, eu me lanço para o que está na frente” (Fl 3,13).[8]
Deste modo, podemos constatar que o curso das leituras, particularmente no ciclo do Ano C, desde a Quarta-feira de Cinzas, nos oferecem um itinerário de conversão orientado para a reconciliação com Deus. E é deste encontro com o Senhor que brota a vida nova conquistada por Cristo através de sua morte e ressurreição.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] CONC. VAT. II, Constituição sobre a Liturgia, Sacrosanctum Concilium n.109.
[2] NOCENT, A, “A quaresma”, in AUGÉ, M. O ano litúrgico: história, teologia e celebração, col. Anámnesis 5, p. 170. São Paulo, 1991.
[3] GOUGAUD, L., “Cendres”, in Dictionnaire de Spiritualité, t.II.1, Paris, 1953.
[4] O canto confere ao gesto exterior o seu caráter de ato litúrgico, sendo a expressão vocal da dimensão interior dos fiéis, além de gerar e manifestar a comunhão entre os membros reunidos. Diante disso, impõe-se a urgência em recuperar a dimensão ritual-cerimonial do canto em nossas ações litúrgicas.
[5] HAMELINE, J.Y., Une poétique du rituel, Paris, 1997, p. 139.
[6] Esta fórmula, como se pode verificar, não menciona o elemento ou o gesto da imposição das cinzas, mas o significado do gesto ritual, ao contrário da fórmula antiga, que figura como segunda opção – “Lembra-te que és pó e ao pó voltarás” – que está em estreita conexão com o gesto de quem impõe as cinzas.
[7] BOGAZ, A., SIGNORINI,I. A celebração litúrgica e seus dramas: um breve ensaio de pastoral litúrgica, São Paulo, 2ª ed, 2004, p. 120.
[8] Ibid. p. 169.