Natal do Senhor – Missa do Dia
Is 52,7-10; Sl 97; Hb 1,1-6; Jo 1,1-18
25 de dezembro de 2022
Homilia: Viver “HOJE” como pessoas salvas
Irmãos e irmãs, nós ouvimos esta noite, o que o anjo proclamou aos pastores de Belém: “Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador” (Lc 2,11). “Salvador” é exatamente o significado do nome de Jesus: “Deus salva”. Este menino deitado na manjedoura é o nosso Salvador, o Salvador tão desejado, tão esperado pelos patriarcas, pelos profetas e pelos sábios; ele é o “Salvador do mundo” (Jo 4,42). E, como talvez nós já saibamos, a salvação que Jesus nos trouxe é o dom da vida eterna, a abertura que nos é feita das portas do Reino, uma vida além desta vida terrestre numa alegria sem fim. Mas será que devemos limitar a salvação a um futuro desconhecido, a um desígnio divino que só se realizará após a nossa morte? Não, irmãos e irmãs! Se o Verbo se fez carne, é também para nos salvar naquilo que há de mais concreto em nossa atual existência. A salvação não é para amanhã, mas para hoje. Mas, hoje, do que Jesus nos salva?
Eu diria, a princípio, que Jesus nos salva do medo de nossa humanidade. Ou, em outras palavras, Jesus nos ensina a amar aquilo que somos. Fundamentalmente está inscrito no ser humano um medo de ser, simplesmente, aquilo que é. A cada dia, nós colidimos contra nossa condição de finitude. Sim, por natureza, somos criados, finitos, limitados. Rapidamente, aprendemos que nós não somos e nem podemos tudo. Tantas coisas nos escapam. Diante destas limitações propostas à nossa condição, é muito comum ver em algumas pessoas uma certa culpabilidade por não conseguir mudar, não progredir, não mais poder mais fazer algo que se fazia antes… é como se algumas pessoas achassem que seja um pecado ser humano! Mas, irmãos e irmãs, a salvação é Deus em nossa carne, é o infinito de Deus circunscrito em nossa finitude humana, é o próprio Deus nos dizendo: “Tu és precioso aos meus olhos e eu te amo como tu és”. São João nos diz: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Deus não poderia encontrar nada mais extraordinário do que assumir a nossa condição de criatura para nos ensinar a amar o que somos por natureza. Sim, nós somos fracos e vulneráveis, mas não há razão para lamentar, visto que a divindade habita em nós. O apóstolo Paulo compreendeu isso muito bem, quando disse: “Sinto prazer nas fraquezas… Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (2Cor 12,10). Minha força, é o poder de Deus manifestado em minha carne, e isso se faz graças à Encarnação do Verbo de Deus.
A segunda dimensão da salvação resulta da primeira: Deus nos salva nos humanizando. Por natureza, somos seres de desejo. Mas, como é difícil viver como um ser de desejo! Corremos por todo lado investindo nosso desejo em coisas artificiais ou passageiras. E a nossa sociedade nos faz acreditar que ela pode satisfazer todos os nossos desejos. Talvez ela possa até satisfazer as nossas “necessidades”, mas certamente ela não pode satisfazer os nossos desejos. Isso porque, fundamentalmente, o desejo que habita o ser humano não tem objeto. É um desejo de infinito. E esse desejo é vital para o ser humano, pois ele é como que um vazio que nos faz ir adiante. E mais uma vez devemos nos lembrar: “O Verbo se fez carne”. Deus vem em nossa carne para assentar-se à beira do poço do nosso desejo (cf. Jo 4). Ele não vem nos tirar esse desejo – pois isso seria nos desumanizar –; mas vem preenchê-lo. Deus em nossa carne, é a fonte de vida eterna que vem ao encontro do nosso desejo de infinito. Ser salvo, é viver como homem e mulher de desejo, estando ligado à fonte que sacia e que é o próprio Deus. Ser salvo, é viver em paz com seu desejo, deixando-se conduzir, não pela cobiça da carne, mas pelo Espírito Santo que, pelo Batismo, habita em nós.
Finalmente, irmãos e irmãs, devemos compreender que Deus não nos salva “da” nossa carne. Ele nos salva “em” nossa carne. A salvação, é ser visitado, reerguido, recriado, glorificado “em” nossa carne. Se é importante para nós fazer, todos os anos, memória do nascimento do Salvador, isso é para nos lembrar que a salvação é permanente. É “agora” que Deus nos salva. É “hoje” que ele nasce em minha carne para me ensinar a amar minha humanidade e a viver genuinamente como ser humano. Estamos aqui muito longe de toda essa onda de movimentos “espiritualistas” que querem nos desumanizar, fazendo-nos pensar sermos anjos. Tais iniciativas só fazem aumentar uma culpabilidade desnecessária, pois somos limitados… “Quem quer ser anjo, acaba sendo a besta” (Pascal)… Por isso, sejamos felizes, irmãos e irmãs, por saber que o lugar da salvação é a nossa humanidade. O Verbo se fez carne, e pela Encarnação, Deus aboliu a barreira que separava o divino do humano, assim como na Cruz, ele aboliu a barreira do pecado que nos separava d’Ele. Deus, não querendo ver o ser humano separado dele, fez de nossa carne o lugar do encontro. Nossa carne não está mais do lado do pecado, mas do lado da glória. Doravante somos destinados a participar da Natureza divina (2Pe 1,4). São Paulo, mais uma vez, nos dá seu exemplo: “Minha vida presente na carne – ou seja, minha atual condição de ser humano –, eu a vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20).
Viver como um ser salvo, é viver na escuta do Deus que habita em mim, é assumir meus limites naturais como sendo ocasiões de deixar Deus manifestar sua força na minha fraqueza, é deixar Deus visitar e curar todas as dimensões do meu ser, é escolher aquilo que honra minha humanidade, e lhe traz paz e alegria. “Se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Cor 5,17). Assim, irmãos e irmãs, festejando o nascimento de nosso Salvador, nós festejamos nosso próprio nascimento para a vida nova em Deus, festejamos nossa salvação. Portanto, irmãos e irmãs, vivamos hoje e sempre como pessoas salvas! Amém!
Dom Martinho do Carmo, osb