Cristo Rei – Ano C
20 de novembro de 2022
Comunidade Anawin

Homilia

Caros irmãos e irmãs, a festa do Cristo Rei foi instituída numa época em que a Igreja, evitando as repúblicas instituídas no mundo ocidental, conservava uma nostalgia das monarquias que iam desaparecendo.

Entretanto, o rei que nos é apresentado no Evangelho de hoje não tem nada desse cheiro de triunfalismo. Ele não está vestido com roupas suntuosas e não se senta em almofadas de veludo bordadas a ouro. Ele é um rei nu, entronizado não num trono, mas em uma cruz. O povo, a quem ele sempre manifestou unicamente a bondade de seu Pai, fica ali olhando, atordoado, sem saber o que pensar ou o que dizer. Acima de sua cabeça está um sinal sarcástico, escrito pelos ocupantes romanos, onde está escrito: “Este é o Rei dos Judeus”. E todos os que falam o fazem para zombar dele. Todos menos um.

Os líderes do povo Judeu, assim como os soldados romanos e o primeiro dos dois ladrões o convidam a se salvar e descer da cruz. Como se ele tivesse vindo para se salvar e não para nos salvar. Eles não entenderam nada.

Apenas um entendeu: um pobre malfeitor, plenamente consciente de sê-lo, que não guarda rancor daqueles que o pregaram à cruz, pois reconhecia ter recebido a justa recompensa pelos crimes que cometeu. Sem nada a perder, ele tem tudo a ganhar. Ele não pede para ser salvo da morte. Ele não pede para descer milagrosamente de sua cruz.

Ele está ciente da enorme distância que existe entre Jesus e ele, já que lembra seu companheiro que Jesus não fez nada de errado, enquanto eles recebem o que merecem. Ao mesmo tempo, sente-se completamente à vontade com Jesus, visto que aceitou sofrer o mesmo destino que ele, e – algo inédito nos Evangelhos – lhe fala com grande familiaridade, cheio de ternura, usando o seu nome, Jesus (e não Mestre, Cristo, Rabi e nenhum outro título). E o que ele lhe pede? Simplesmente que Jesus se lembre dele quando entrares no seu reinado, mesmo que, obviamente, não tenha ideia do que será esse reinado, nem quando Jesus voltará.

 Em sua resposta, Jesus faz outra de suas grandes revelações sobre a natureza do Reino de Deus – esse Reino que ele anunciou ao longo de sua pregação. “Hoje”, disse ele, “estarás comigo no Paraíso”. Unidos na morte, estarão igualmente unidos na verdadeira vida. Se unirmos esta revelação à outra feita por Jesus em outro momento, como aquela onde ele diz que “o Reino de Deus está no meio de vós”, compreenderemos que o Reino de Deus é plenamente realizado na pessoa de Jesus, e que se realiza, desde já, em todos os que estão unidos a Jesus na fé, na esperança e na caridade.

O rei que nos é apresentado na cruz nada tem a ver com os poderosos deste mundo, que geralmente impõem seu poder pela violência ou – mais comum em nossos tempos – pela ideologia. Jesus não recorre a nada disso; não pede que a vingança divina desça sobre seus perseguidores. Ao contrário, implora para que desça sobre eles a misericórdia: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”. Esta é a atitude de um verdadeiro homem livre. E o segundo malfeitor, a quem chamamos de “bom ladrão”, também é um homem livre.

Um psicólogo moderno, Erich Fromm, em sua obra intitulada “O medo da liberdade”, mostrou como o ser humano, quando se depara com sua solidão existencial, quando se percebe como um ser distinto de todos os outros e separado de todos os outros, muitas vezes oscila entre duas atitudes patológicas. A primeira é “fundir-se” (na fusão com o outro você desaparece) com os outros exercendo poder sobre eles; a segunda é abrir mão da própria liberdade numa “dependência fusional” (você depende do outro e não mais de você mesmo) com quem exerce o poder. Ora, isso é o contrário de liberdade! É o contrário de ser cristão…

Deus tendo-se revelado na cruz, em Jesus de Nazaré, não como o totalmente outro transcendente e todo-poderoso, mas como o Outro totalmente próximo e sem poder, fez o bom ladrão vencer o seu “medo da liberdade”. Ele pôde ser completamente livre, mesmo estando pregado na cruz; pôde dialogar com Jesus, o seu Deus, numa extraordinária liberdade e serenidade.

Que nesta Eucaristia este mesmo Jesus reine no coração de cada um de nós, nos liberte do nosso próprio “medo da liberdade” e nos permita chegar a uma liberdade que ao menos se aproxime um pouco mais daquele ladrão crucificado ao seu lado. Amém.

Dom Martinho do Carmo, osb

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