28º. DOMINGO DO TC-B / Mc 10, 17-30

D.Paulo DOMICIANO,OSB

No último domingo nós meditamos sobre a radicalidade do matrimônio, baseada sobre o desejo original de Deus criador para o homem e a mulher, como imagem da própria comunhão que existe no seio da Trindade. Retomando as palavras do Gênesis, Jesus recorda que, para realizar este projeto divino, “um homem abandona seu pai e sua mãe, une-se à sua mulher, e os dois se tornam uma só carne” (Mc 10, 7). Na sequência deste episódio temos o Evangelho de hoje, onde, por causa do Reino de Deus, por causa do seguimento de Cristo, a relação com a família é relativizada, como acontece na vida dos apóstolos e, ao longo dos séculos, tantos que deixaram tudo para servir exclusivamente a Cristo através do celibato consagrado. Temos assim duas formas de vocação, duas formas de viver a busca do Reino de Deus.

Qualquer que seja o modo de corresponder à nossa vocação ao Reino de Deus, no matrimônio, na vida sacerdotal ou na vida consagrada, a palavra do Evangelho de hoje nos alcança. Pois, como nos declara a Carta aos Hebreus, “a Palavra de Deus é viva, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”.

Jesus retoma seu caminho para Jerusalém e neste momento se apresenta um homem, um personagem anônimo – alguém que nos representa – provavelmente cheio de boas intenções, que interpela Jesus com uma questão muito importante para um judeu piedoso: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?” Ele deseja “a vida eterna”, está em busca de algo que vai além disso tudo que ele vive aqui neste mundo, de tudo o que ele possui ou que lhe falta, além de tudo o que lhe dá prazer passageiro ou de tudo o que lhe causa sofrimento. Consciente ou não, esta fome de eternidade é inerente ao ser humano; o homem não pode se contentar com este mundo, por mais pleno que ele seja, porque foi criado à imagem e semelhança de Deus e, por isso, só pode encontrar a plena realização de sua vocação humana na eternidade, mergulhado em Deus.

Este homem se apresenta perguntando o que deve fazer para obter esta vida eterna. Ele pretende, talvez, descobrir algo que possa fazer para conquistar, para merecer a vida eterna. Mas na verdade, a vida eterna é um dom de Deus, a ser recebido gratuitamente e não conquistado ou merecido. Contudo, a pergunta do homem é pertinente. Mesmo que a vida eterna em comunhão com Deus seja um dom gratuito a ser acolhido por nós, não se trata de algo passivo, de uma simples adesão intelectual ou de um desejo interior apenas. De nossa parte, qual deve ser nossa disposição, interior e exterior? Na vida prática, o que devemos fazer? Como o Evangelho nos mostra, não é suficiente confessar nossa fé em Deus com os lábios e não agir.

Jesus então responde citando as palavras da Aliança, os mandamentos. Mas é interessante notar que ele não cita os três primeiros, aqueles referentes a Deus, mas somente os que vem a seguir, que se referem ao próximo. Deste modo Jesus afirma que a salvação depende de nossa relação com os outros, com o próximo. Não diz que nossa devoção a Deus ou os nossos cultos são indispensáveis, mas o modo como decidimos viver o amor em relação aos homens.

Surpreendentemente, o homem responde dizendo que desde sua juventude observa tudo isso. É difícil avaliar até que ponto esta resposta revela a heroicidade daquele homem – afinal, quem de nós poderia dizer o mesmo? – ou até que ponto são palavras cheias de pretensão e orgulho… Independente da motivação do coração dele, Jesus o olhou com amor, fixou no fundo dos seus olhos e viu o que havia em seu coração. Naquele momento, aquele homem sem um nome, que não sabemos de onde vinha ou o que desejava na realidade, deixou de ser um anônimo, passou a ser alguém visto e amado por Jesus; ele passou a ser um convidado a ser discípulo de Jesus. “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!”

Neste momento o homem do Evangelho se dá conta de que a vida eterna, a vida plena, que ele desejava dependia não de “fazer” alguma coisa para conquistá-la, mas dependia de algo muito mais amplo e exigente: dependia de “ser”; de ser disponível e livre, dependia de estar de mãos vazias, de ser pobre diante de Deus.

O Evangelho diz que “quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico”, em nossa linguagem de hoje, diríamos que “ele ficou deprimido”. Ou seja, ele constata que apesar de toda a sua boa vontade, de seu entusiasmo, ele não estava disposto a oferecer até o fundo a sua vida ao próximo por causa do Reino. Queria apenas “fazer” alguma coisa, mas sem se comprometer por inteiro. A constatação de Jesus é esta: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!”

[Aqui vale uma observação: entre as causas de nossas “depressões”, esse sentimento de vazio e falta de sentido na vida, que todos nós temos, em maior ou menor intensidade, não estaria, justamente, esta indisponibilidade a nos deixar confrontar com a Palavra de Jesus, colocando nossas riquezas à disposição do próximo e nos colocando em seu seguimento, saindo de nós mesmos?]

Ricos, todos nós somos! Todos temos riquezas, em maior ou menor quantidade. A riqueza, é claro, não se limita a dinheiro ou bens, mas diz respeito a tudo que em nossa vida é valioso: nossos dons, talentos, capacidades intelectuais, espirituais, físicas, enfim, tudo o que recebemos ou que construímos ao longo da vida neste mundo. A tentação é acharmos que tudo isso pode nos garantir alguma segurança, alguma garantia de vida eterna.

Jesus não despreza a riqueza deste homem, dizendo que jogue tudo fora. Ele o convida a entra na dinâmica deste olhar de amor, nesta relação de doação, de esvaziamento diante do próximo, como Ele mesmo fez – Ele que era de condição divina e esvaziou-se por amor a nós (cf. Fl 2,6ss). Toda a riqueza que ele possui deve ser colocada a serviço do outro; tudo o que temos e somos só tem razão de ser, se nos colocarmos a serviço do próximo. Este é o “fazer” que nos coloca na dinâmica do Reino de Deus, é o que nos abre o acesso para a vida eterna.

Se não entramos na dinâmica do amor acolhido e partilhado gratuitamente, se optamos em ficar presos às nossas falsas seguranças, fechados sobre nós mesmos para manter nossos tesouros, não permitimos que a vida divina corra em nossas veias e nos mergulhamos nas sombras da tristeza, do vazio existencial. Voltamos para nosso mundo solitários e continuamos anônimos. Ao passo que aqueles que deixaram tudo, como os discípulos, recebem a vida eterna, recebem um nome e constroem uma história.

Peçamos ao Senhor, pela intercessão de todos aqueles que tiveram a coragem de colocarem-se na corrente do dom acolhido e partilhado, na corrente do amor, Santos e Santas, para que também nós possamos acolher este olhar que nos confere identidade, que nos abre à relação com Deus e com o próximo, caminhando juntos para o mundo novo, o Reino de Deus.

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