Segundo Domingo da Quaresma – Ano B
Pe. Fábio SIQUEIRA (Arquid. do Rio de Janeiro)
Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18
Sl 115(116B),10.15.16-17.18-19 (R. Sl 114,9)
Rm 8,31b-34
Mc 9,2-10
Este é meu Filho, o amado. Escutai-o!
Estamos reunidos, queridos irmãos e irmãs, na força do Espírito Santo, para celebrarmos juntos o “Dia do Senhor”. O Papa São João II, de feliz memória, na sua Carta Apostólica Dies Domini (1998), sobre o Domingo, nos recordou, citando o Pseudo-Eusébio de Alexandria, um autor do século IV, que o Domingo é o “Dia do Senhor e o Senhor dos Dias”.1 É o “Dia do Senhor” porque nele o Cristo ressuscitou. E é o Senhor dos Dias, porque além de ser sacramento daquele dia eterno e sem fim que aguardamos, ele se converteu em nosso principal dia de festa, dia de oferecer a Deus a nossa ação de graças semanal e comunitária, dia de fazermos “Eucaristia”, e de nos alimentarmos nessa dupla mesa que o Cristo nos preparou: a mesa de sua Palavra e a mesa de seu Corpo e Sangue. O Domingo é nossa Páscoa da Semana! Estamos vivendo a Quaresma e isso deixa ainda mais claro o sentido pascal de cada domingo, uma vez que estamos nos aproximando da grande celebração anual da Páscoa do Senhor.
A primeira leitura nos apresenta o sacrifício de Isaac, ou como outros preferem chamar, o “sacrifício de Abraão”, tendo em vista a grande angústia deste homem de Deus que é provado na sua fé. Enfim, a promessa de Deus parece ter se realizado: nasce Isaac, aquele cujo nome provém da raiz do verbo “sorrir”. Depois da circuncisão do menino, Sara sua mãe disse: “Deus me deu motivo para rir, e todos os que o ouvirem vão sorrir comigo” (Gn 21,6). Enfim, a alegria encheu o coração dos dois anciãos, uma vez que, até então, Sara era considerada estéril e Abraão ainda não tinha tido “o filho da promessa”. Contudo, logo em seguida, Abraão é posto à prova e Deus lhe pede seu único filho, que era “único” justamente por ser aquele que Deus lhe havia prometido.
Em âmbito judaico, várias foram as interpretações dessa passagem. Um texto rabínico, o Midrash Rabbah, afirma que tal se sucedeu porque Isaac e Ismael, os dois filhos de Abraão, discutiram entrei si, com o intuito de provar quem era o mais piedoso. Isaac, então, teria dito que ainda que Deus lhe pedisse um membro, ou a própria vida, ele não negaria isso a Deus. Logo em seguida, Abraão teria sido posto à prova.
A exegese moderna, no entanto, viu no texto uma “legenda cultual”, um texto que tinha como finalidade demonstrar o porquê de terem cessado, em Israel, os sacrifícios humanos tão comuns no Antigo Oriente Próximo. Os Padres da Igreja, por sua vez, sempre leram este texto a partir da tipologia. Isaac é um typos de Cristo, ou seja, ele representa nesta cena o próprio Cristo e antecipa o que será sua missão. Vários são os sinais que ajudam a estabelecer a comparação:
· Em primeiro lugar, a maneira como Isaac é descrito por Deus: “Toma teu filho, teu unigênito, a quem tu amas, Isaac” (Gn 22,2). Cristo é o unigênito do Pai e, particularmente nos Evangelhos sinóticos, é chamado de “o amado” – vide as cenas do Batismo (Mt 3,17; Mc 1,11; Lc 3,22) e da transfiguração (Mt 17,5; Mc 9,7), como a que ouvimos hoje, bem como a parábola dos vinhateiros homicidas (Mc 12,6; Lc 20,13). Todas apontando para o mistério da entrega que o Senhor fará de si mesmo em sua Páscoa;
· Em seguida, nota-se que Isaac leva às suas costas o feixe de lenhas sobre o qual deveria ser sacrificado, assim como Cristo levará também a Cruz às costas;
· Isaac obedece em tudo a Abraão indo em direção ao seu próprio sacrifício, ainda que sem saber, como um manso cordeiro que é levado ao matadouro. Cristo também, silencioso e obediente em tudo ao Pai, assumiu a cruz por nós e por nossa salvação.
Todavia, enquanto Deus poupou Isaac e poupou também, de certa forma, Abraão, que se via angustiado em ter de sacrificar o “seu único”, Ele não se poupou e não poupou o seu Cristo, seu único, mas aceitou que Ele, seu “amado”, se oferecesse no madeiro da cruz por nós. O Pai viu o seu Cordeiro ser imolado por amor dos homens.
O salmo 115 canta a alegria do homem que é liberto por Deus dos apuros e que decide “erguer o cálice da salvação” e pronunciar uma berakah, um “sacrifício de louvor”, como forma de ação de graças a Deus que o livrou de seus inimigos. O salmista canta ainda a alegria de cumprir a vontade do Senhor. Abraão se encaixa neste salmo, porque cumpriu até o fim a vontade de Deus e porque experimentou a libertação que Deus lhe concedeu poupando-o de oferecer “seu único”. O obediente perfeito, contudo, é aquele que nos será apresentado pelo evangelho, o Cristo. Com sua morte e ressurreição, ele nos garantiu que o refrão que cantamos nesse salmo responsorial é uma realidade na qual podemos confiar: “Andarei na presença de Deus, junto a ele na terra dos vivos”.
O Evangelho deste segundo domingo da quaresma é o da Transfiguração de Cristo numa “montanha alta” e “retirada”. Ela acontece seis dias depois do primeiro anúncio da paixão – anúncio que Cristo faz com “parresia”, palavra grega que significa “desassombro” – diante do qual Pedro se escandalizou e foi mandado para a sua posição de ovelha, atrás do pastor que deve ensinar o caminho a seguir (Mc 8,31-33).
Tendo em vista que o coração dos discípulos ficara sombreado pelo escândalo da mensagem da Cruz, Cristo fez, então, a sua metamorfose, ou seja, Ele que antes havia tomado a “forma de servo” (Fl 2,5-11), agora manifestou-se na sua “forma divina”, expressa aqui pela alvura sobrenatural das suas vestes – tão brancas como nenhuma lavadeira na terra poderia branqueá-las (Mc 9,3) – e pela presença de Moisés e Elias, a Lei e os Profetas, que estão voltados para ele e com ele dialogam.
Cristo, nosso Isaac, é a plenitude da Lei e dos Profetas; Ele próprio é a Palavra contida na Lei e nos Profetas e que se fez carne para a nossa salvação. Ele morrerá, mas a sua morte será gloriosa. A aparente derrota é, na verdade, a vitória. Assim como Abraão cumpre o seu teste de sacrificar o seu Filho no não-sacrifício feito por obediência à Palavra de Deus advinda a Ele por meio do anjo que interrompera sua ação, assim também Cristo manifesta toda a sua glória numa aparente não-glória de morte de cruz, que redundará na grande glória, na mais triunfal de todas, a sua “ressurreição”, da qual a transfiguração, ainda que grandiosa, é ainda símbolo e prenúncio. No caminho quaresmal aprendemos a não temer as cruzes e a morte que nos espera, porque sabemos que sairemos vencedores com Aquele que se transfigurou e que ressuscitou dos mortos para a nossa salvação, abrindo-nos o caminho da Páscoa eterna. Afinal, como nos recorda a “Oração sobre o povo” deste segundo domingo da Quaresma, nós esperamos alcançar um dia a mesma glória que Cristo revelou aos apóstolos.
O Pai, que se manifesta na nuvem, faz os meros mortais ouvirem sua voz. O que Ele diz assemelha-se ao que havia dito no Batismo do seu unigênito: Este é meu Filho, o amado. Escutai-o! (Mc 9,7). Além da declaração do Cristo como Filho e como “o amado”, o Pai ordena que o escutemos. Eis aqui também algo a observarmos em nosso itinerário quaresmal: este deve ser um tempo de oração mais intensa e, portanto, de uma escuta mais atenta da Palavra, abrindo assim o nosso coração à luz do Ressuscitado que deseja nos penetrar com sua glória já nesta vida e, de modo pleno, na outra.
Diante da certeza desse amor que assume a morte e a vence por nós, podemos fazer nossas as Palavras do Apóstolo Paulo na segunda leitura: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? Deus que não poupou seu próprio filho, mas o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele? Quem acusará os escolhidos de Deus? Deus, que os declara justos? Quem condenará? Jesus Cristo, que morreu, mais ainda, que ressuscitou, e está, à direita de Deus, intercedendo por nós?” (Rm 8,31b-34). A Quaresma não é tempo de condenação, ao contrário, é tempo de experimentarmos de modo intenso e saboroso a salvação que o Cristo veio nos trazer. É tempo de jejum sim, mas também de perfumar a cabeça, como nos exorta o evangelho, e de esperar com alegria a grande solenidade pascal. Escutemos a voz do Cristo, deixemo-nos guiar por Ele, caminhemos confiantes com Ele em nosso deserto quaresmal, certos que a Ressurreição virá e de que entraremos, alegres e jubilosos, na glória da sua Páscoa, andando ao seu lado, um dia, “na terra dos vivos”!