Homilia para o IV Domingo do Advento – B,
proferida a 20 de dezembro de 2020
por Dom Martinho do Carmo OSB
2Sm 7,1-5.8b-12.14a.16; Sl 88; Rm 16,25-27; Lc 1,26-38
Introdução
Caros irmãos e irmãs, ao situar o mistério da Anunciação no último domingo do Advento, a Igreja sublinha que não se trata simplesmente de uma festa mariana, mas que a Anunciação é um dos momentos fundamentais da Encarnação de Deus em Jesus Cristo, mistério que nos trouxe a salvação.
Homilia
Irmãos e irmãs, quando vocês pensam em Deus, quais os sentimentos que surgem em vossos corações? Confiança, amor, liberdade, um calor interior, uma sensação de que a vida tem sentido? Ou talvez – ao menos uma vez na vida, ou diante das provações – sinto incompreensão, desconfiança, medo de ser julgado ou punido, sentimento de injustiça, raiva, sensação de submissão e opressão? Sem dúvida, em relação a Deus, todos nós experimentamos esses dois tipos de emoções (positivas e negativas). O evangelho de hoje, de certa forma, é uma ilustração de nosso relacionamento com Deus.
O anjo Gabriel entra na casa de Maria, aparentemente, sem avisá-la antecipadamente desta visita. Não sabemos nada sobre local e hora exatos deste encontro. É possível que o anjo tenha aparecido quando Maria estava cozinhando, quando trabalhava no jardim ou, quem sabe, enquanto tirava uma soneca após o almoço? Sim, Deus entra em nossa vida lá onde estamos, entre nossas ocupações e preocupações, nossos projetos, nossos sonhos. E isso pode nos surpreender. Como sugere-nos o texto grego (διεταράχθη), Maria não ficou apenas surpresa com essa visita, mas mais que isso: ela ficou perturbada, perplexa, fortemente agitada em seu interior, segundo o emprego literal do verbo grego διαταράσσω. Deus nem sempre avisa que vai chegar. E suas passagens muitas vezes são ocasião de grandes mudanças, reviravoltas em nossas vidas. Maria estava prometida em casamento a José; ela tinha o projeto de se casar com ele, para constituir uma família. Mas eis que surge o inesperado chamado de Deus: ela deve tornar-se Mãe de Seu Filho. Isso pode ser realmente perturbador.
Maria tem medo, pois por isso o anjo lhe diz: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus” (Lc 1,30). “Não tenhas medo!” Estas três pequenas palavras ocorrem cerca de trezentas e sessenta e cinco vezes na Bíblia (quase que uma para cada dia do ano). Elas percorrem toda a história da salvação, toda a história da relação de Deus com a humanidade. Tendo, na Bíblia, quase que uma aparição para cada dia do ano, a expressão torna-se como que um exorcismo, que nos permite começar, de forma sempre renovada a cada dia, a crer no amor de Deus, a crer que somos amados e diariamente visitados por Ele, como somos e onde estamos: Deus está sempre presente em nossas vidas.
“O Senhor está contigo!”, disse o anjo a Maria, mas também diz o mesmo a cada um de nós. O Senhor está sempre conosco, independentemente do que esteja acontecendo em nossas vidas, em nossa consciência (mesmo se nos sentimos ou nos reconhecemos culpados). O Senhor se encanta conosco: “encontraste graça diante de Deus”. Será que, então, podemos ter medo dele? Ou te medo de algo que venha dele? Ou se, como dissemos, Ele está conosco, porque damos lugar ao medo em nossas vidas?
Sim, Maria ainda possui algumas dúvidas. Podemos dizer que o anúncio inesperado do anjo deixa Maria angustiada. Ela não compreende muito bem, e permanece cética: como que ela, sem intervenção do homem, pode se tornar a mãe? E ainda Mãe de Deus? Nós também conhecemos essa experiência de angústia, de vertigem, às vezes paralisante, que nos domina quando refletimos sobre a vida, sobre o que fizemos ou faremos com ela. Maria se depara com uma proposta que pode mudar radicalmente sua vida. Ela não sabe nada sobre o futuro. Portanto, ela, de forma legítima, se questiona. Às vezes, trazemos questões, ansiedades e angústias que nos culpabilizam, porque achamos que elas não são compatíveis com a fé, e que devemos excluí-las de nosso pensamento. Temos a ideia de que um “verdadeiro cristão”, um “bom discípulo de Cristo” não faz perguntas, não deve ter certos sentimentos, bons ou ruins. Entretanto, a fé não exclui dúvidas, angústias e ansiedades. Na verdade, a fé abrange tudo isso. O anjo assegura a Maria que “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37) e lhe explica que ela conceberá um filho por ação do Espírito Santo, do poder do Altíssimo que a “cobrirá com sua sombra”. Maria consente em ato de fé, apesar de desconhecer totalmente o que lhe espera. Ela se abandona a Deus. Ela confia n’Ele. E é assim que ela acolhe dentro de si a divindade.
Irmãos e irmãs, o que este relato da Anunciação nos diz sobre Deus? Ora, ele mostra-nos a confiança que Deus tem em nós, independentemente da nossa posição social, idade, realizações ou limitações, virtudes ou misérias. Deus é generoso e busca, com seus chamados, fazer florescer a graça e a beleza que Ele depositou em nós. Às vezes é um trabalho difícil, tão difícil que alguns desistem, e aceitam obstinadamente continuar feios e “sem graça” aos olhos de Deus.
Por meio de seus chamados, Deus nos convida a sermos responsáveis por nossas vidas e a construí-la com Ele. Um dos maiores mistérios da Encarnação é essa vontade que Deus tem de nos salvar somente se isso acontecer com a nossa aceitação e participação. E é essa consciência de estarmos na presença de Deus e de construir com Ele a nossa vida que, mesmo que não elimine, certamente aliviará nossas angústias, nossos medos, nossas dúvidas. Isto – e não é uma “vacina” por mais bem vinda que ela seja! –, que tirará esse peso de angústia de nossos ombros. Hoje, como em todos os dias, o Senhor diz a cada um de nós: “Não tenhas medo, porque encontraste a graça diante de Deus”. Resta, como sempre, a nossa parte: a coragem de, simplesmente acreditar e dizer sim.
Amém!
Após a comunhão
Caros irmãos e irmãs, desde o início da quarentena na Itália, quando a missa no Vaticano era celebrada sem a participação dos fiéis, o Papa Francisco sempre convidava àqueles que não podiam comungar sacramentalmente a fazer a Comunhão espiritual com a seguinte oração:
Meu Jesus, eu creio que estais presente no Santíssimo Sacramento do Altar. Amo-vos sobre todas as coisas, e minha alma suspira por Vós. Mas, como não posso receber-Vos agora no Santíssimo Sacramento, vinde, ao menos espiritualmente, a meu coração. Abraço-me convosco como se já estivésseis comigo: uno-me Convosco inteiramente. Ah! não permitais que torne a separar-me de Vós!
Papa Francisco