Homilia para o XXIX Domingo do Tempo Comum – A,
proferida a 19 de outubro de 2020
por Dom Martinho do Carmo OSB
Is 45,1.4-6; Sl 95; 1Ts 1,1-5b; Mt 22,15-21
Caros irmãos e irmãs, uma dupla delegação se apresenta a Jesus. Ela é composta, ao mesmo tempo, por discípulos dos fariseus – defensores da lei –, e por partidários de Herodes – defensores do governo estabelecido – (Mt 22,15). Na linguagem de hoje, diríamos que eram os representantes da Igreja e do Estado. E esta um tanto incoerente aliança tem um objetivo muito preciso: armar uma armadilha para esse Jesus, pois ele perturba o poder religioso e o temporal. Mas, para que Jesus não se safe, eles começam lisonjeando sua sabedoria, pois ele é Mestre e ensina o caminho a Deus; sua coragem, porque fala a verdade; sua liberdade, porque não se deixa influenciar por ninguém; sua imparcialidade, porque não julga pelas aparências (Mt 22,16). E para que Jesus não se refugie no silêncio, continuam o discurso: “Dize-nos, pois, o que pensas”, pois um homem tão sábio, verídico, corajoso e imparcial certamente tem uma opinião sobre a questão que aflige toda a Palestina: o Império Romano que subjugou Israel; Roma ocupa a Terra Santa. Em benefício do imperador romano, há imposto! Recusá-lo é colocar-se fora da lei. Pagá-lo é aceitar e colaborar com a ocupação opressora. “Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?” (Mt 22,17). Eles exigem uma resposta de ordem moral, dizendo o que é “permitido” e, portanto, “bom”; e o que é “proibido” e, portanto, “mau”. Uma resposta clara – “sim” ou “não” – sem nenhum tipo de evasão. Uma armadilha perfeita! Se diz sim, Jesus revela-se um colaborador, e os fariseus o acusarão de publicano! Se ele disser não, ele se revelará um opositor, e os partidários de Herodes o perseguirão! É permitido, sim ou não, pagar o imposto imperial? Qualquer que seja sua resposta, Jesus está preso em uma armadilha.
Mas eis a inesperada resposta: “Jesus percebeu a maldade deles e disse: ‘Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha?’” (v.18) Aquilo que a pergunta acusadora camuflava é repentinamente revelado. E Jesus responde com um pedido: “Mostrai-me a moeda do imposto!” (v.19). Dinheiro, Cristo não tem. Mas os acusadores sim! Eles falam de Deus, mas servem Mammon! “A moeda do imposto” eles têm! Pois eles mesmos levaram a Jesus a moeda (cf.19).
“‘De quem é a figura e a inscrição desta moeda?’ Eles responderam: ‘De César’. Jesus então lhes disse: ‘Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’” (20-21). A resposta foi dada, de forma “viva, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4,12), na “força que é o Espírito Santo; e com toda a abundância” (1Tes 1,5). A Palavra definitiva que sai da boca de Cristo, “penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Ela julga os pensamentos e as intenções do coração” (Hb 4,12).
“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (v.21). O importante não é mais situar-se no que é permitido ou no que é proibido. Jesus nos liberta de uma falsa problemática moralizante. Ele desperta em nós o melhor de nós mesmos: a liberdade e a gratuidade. Ama e faça o que quiseres! Pois “toda a lei se resume neste único mandamento: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’” (Gl 5,14). A lei é feita para o benefício do ser humano e não o ser humano para o benefício da lei! (cf. Lc 6,5; Mc 2,27).
Mas o ser humano é feito para Deus, à semelhança do Deus que a ele se doou: “tudo vos pertence (…) mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,22-23). Fomos criados para estarmos a seu serviço e não para tê-lo à nossa mercê. Ao devolver livremente a César o que é de César, isso não nos dispensa de devolver a Deus tudo o que é plenamente de Deus. A realidade social e política é um fato importante; mas ela não é nem o primeiro nem o último. Cristo é “o alfa e o ômega, o princípio e o fim” (cf. Ap 21.6).
Querer criar, politicamente, um paraíso terrestre, é uma ilusão, um mito. A história e a própria atualidade nos confirmam isso de forma dramática. Já caminhar como peregrino nesta terra em direção a um paraíso celeste, isso sim é uma visão que dá peso e sentido à nossa existência. Demos, portanto, a César o que pertence a César, ou seja, as coisas mortais ou as realidades passageiras, já que César é um ser mortal e passageiro. Mas demos a Deus a parte de nós que não pode morrer, pois Deus é eterno.
Ao nos comprometermos, de forma justa e verdadeira, com as coisas do cotidiano, não podemos perder de vista o essencial de nossa vida para caminharmos para o céu. E esperando em Deus o céu, devemos fazer o nosso melhor aqui na terra, no lugar onde estamos. Dar a César o que é de César ajuda a melhor dar a Deus o que é de Deus. A César pertence o relativo. A Deus pertence o absoluto, pois só Ele é absoluto, só Ele é Deus! “Todos saibam, do oriente ao ocidente, que fora de mim outro não existe. Eu sou o Senhor, não há outro” (Is 45,6).
E podemos também aplicar a cada um de nós a pergunta de Jesus: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda?”. Ou seja, no ser humano, que vale mais do que todas as moedas de prata, que figura, que imagem, que “palavra” está inscrita nele? Irmãos e irmãs, no ser humano está a imagem de Deus (Gn 1,27) e nele está inscrita a Palavra de Deus. Os próprios fariseus, defensores da lei, sabem muito bem disso: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (…) trarás gravadas em teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno (…) e as colocarás como um sinal entre os teus olhos; tu as escreverás nas entradas da tua casa e nas portas da tua cidade” (Dt 6,4-9). Sim, o ser humano, imagem de Deus, pertence a Deus, que lhe diz: “és precioso a meus olhos e eu te amo” (Is 43,43). E em nosso ser mais profundo, “como um selo no coração” (Ct 8,6), leem-se muitos títulos: “Filho adotivo de Deus, Coerdeiro de Cristo, Templo do Espírito Santo”. É por isso que devemos dar a Deus o que é de Deus, ou como diz São Paulo: “ofereçais a Deus vossos corpos como hóstia viva!” (Rm 12,1). Lembremo-nos: “onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Lc 12,34). Sim, somos “vasos de barro” (2Cor 4,7), mas somos o tesouro de Deus!
Portanto, caros irmãos e irmãs – aproveitando o início dos trabalhos de nossa Escola São Lucas de Iconografia –, saibamos que todos nós, e até César, somos “imagens de Deus” (Gn 1,27). Por isso, é nosso dever agir entre os filhos de Deus, “afim de que, em todas as coisas, Deus seja glorificado” (1Pe 4,11), pois Ele quer nos dar vida, porque tudo vem dele e tudo deve conduzir a Ele. O que existe não é tanto um problema de oposição de valores, mas sim uma hierarquia de valores, como nos ensina o próprio Apóstolo Paulo: “que ninguém ponha a sua glória em homem algum. Tudo vos pertence! (…) mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cr 3,21-23).
Tenhamos hoje a coragem de dizer: “Sim, Senhor, eu sou teu! Tudo o que eu tenho é teu e tudo que tu tens é meu. Faz, Senhor, da minha vida uma hóstia viva pela glória do teu Nome”.
Amém!
Após a comunhão
Caros irmãos e irmãs, desde o início da quarentena na Itália, quando a missa no Vaticano era celebrada sem a participação dos fiéis, o Papa Francisco sempre convidava àqueles que não podiam comungar sacramentalmente a fazer a Comunhão espiritual com a seguinte oração:
Meu Jesus, eu creio que estais presente no Santíssimo Sacramento do Altar. Amo-vos sobre todas as coisas, e minha alma suspira por Vós. Mas, como não posso receber-Vos agora no Santíssimo Sacramento, vinde, ao menos espiritualmente, a meu coração. Abraço-me convosco como se já estivésseis comigo: uno-me Convosco inteiramente. Ah! não permitais que torne a separar-me de Vós!
Papa Francisco