Homilia para a Solenidade da Anunciação do Senhor,
proferida a 25 de março de 2020
por Dom Martinho do Carmo OSB
Is 7,10-14;8,10; Sl 39; Hb 10,4-10; Lc 1,26-38
Introdução
CELEBRAMOS hoje a Solenidade da Anunciação do Senhor, e fazemos memória ao dia em que, em Nazaré, na intimidade de sua casa, Maria fez- se interiormente disponível à Palavra de Deus. Ela deixou-se tocar por uma palavra vinda de fora. Ela consentiu que uma palavra vinda de um Outro assumisse carne em sua carne. Maria ultrapassou o medo e assumiu o risco do desconhecido. Que este Mistério, que essa postura de Maria, possam nos ensinar algo com relação ao difícil flagelo que a humanidade enfrenta atualmente.
Homilia
“Como acontecerá isso?”, perguntava Maria.
Caros irmãos e irmãs, Maria deu o primeiro passo na fé. Era uma aventura audaciosa – para não dizer “louca” –, pois não havia nenhum caminho preestabelecido. Era preciso, então, avançar no desconhecido, sem o auxílio de nenhuma representação ou imagem do que iria acontecer após aquela mensagem do Anjo.
Maria deu esse primeiro passo, pois acreditava na promessa feita a Abraão, a Moisés, a Davi. Ela vivia na esperança do advento do Messias. E não era uma espera passiva, porque “esperar”, não é necessariamente o mesmo que “aguardar”: espera aquele que tem esperança, que sabe que foi ouvido, e que será atendido. Maria sabia que tinha sido ouvida por alguém. Maria pôde dizer “sim” porque ela já havia aceitado interiormente aquilo que ainda não conhecia. Ela habitava o tempo presente, mas já vivia a Boa Nova que ainda não havia acontecido. Ela se alimentava da Palavra Divina que ainda não havia sido dada. E é isso que é estar em estado de graça. Maria baniu o medo de seu coração, e por isso a graça pôde operar livremente nela: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus”. E é muito bom poder ouvir isso em meio à incerteza do futuro em que vivemos hoje…
Ora, o medo está relacionado àquilo que temos e que corremos o risco de perder – em tempos de pandemia: a saúde, a própria vida, aqueles que amamos, a paz! –, mas a Graça, para muito além do medo, nos faz desejar aquilo que um Outro quer para nós, e que não ainda temos. Sim, Maria encontrou Graça deixando de ter medo. E essa Graça abriu nela uma passagem para a Palavra de Deus. Maria deixou-se conduzir por um caminho que ela não compreendia. “Para chegares ao que não conheces, te é preciso ir por onde não conheces”, dizia São João da Cruz[1]. E o santo carmelita acrescenta que é preciso passar pela noite escura da razão e dos sentidos para entrar, pela fé, no mistério do Verbo de Deus que se encarna em nossa existência humana[2].
Aos olhos dos homens, o que aconteceu com Maria é impossível e inimaginável. Mas a graça divina derruba nossos obstáculos. Essa “Páscoa” da Palavra de Deus em Maria não podia realizar-se sem que ela mesma se permitisse mudar, sem que ela aceitasse que sua vida, sendo guiada por Deus, escapasse ao que ela pudesse controlar[3]. Abrindo mão do controle do próprio futuro, Maria abre-se para o mistério, para uma verdade que nós jamais conseguiremos sondar: o mistério do Deus vivo no meio de nós.
Tudo isso, como nos diz o Evangelista Lucas, acontece num determinado momento da vida de Maria. Acontece na história de sua vida, mas ele designa um outro tempo – o kaïros –, o tempo de Deus que nos une em nosso “hoje” de discípulos de Cristo. A Páscoa do Verbo de Deus em Maria não se fecha na história. Ela é um acontecimento que se atualiza em nossa vida de fiéis a cada vez que abrimos a Bíblia, ou que ouvimos a Palavra de Deus na liturgia. Por isso, assim como aconteceu com Maria, ouvir a Palavra de Deus é assumir um risco. É consentir ser contagiado por aquilo que nos é dito. É dar o primeiro passo sem saber o que vai acontecer quando se der o segundo…
O primeiro passo pertence a nós, porque Deus nos deixa livres para segui-lo ou não, mas o segundo passo é aquele da graça que nos precede, agindo em nós. O segundo passo é aquele em que o Verbo de Deus se encarna em nossa própria carne. Isso que Maria vivenciou por ocasião do anúncio do anjo, nós também podemos vivenciar cada vez que nos colocamos à escuta da Palavra de Deus. Por meio de nosso Batismo, nos tornamos, como Maria, cheios de graça. Sim, nós fomos agraciados por Deus no perdão de todos os nossos pecados que mancharam nossa beleza de filhos de Deus. Sua misericórdia nos lavou, nos purificou, nos santificou. Cheios de graça, podemos deixar a Palavra de Deus operar em nós e nos conduzir nos caminhos do Espírito. Nós nos tornamos um novo templo onde Deus arma a sua tenda. Mas isso, os sábios e ou doutores não podem compreender; somente os pequeninos que se arriscam em apoiar suas vidas na Palavra de Deus podem descobrir.
É uma aventura de fé. Somente quando a vida é atravessada pelo sopro da Palavra, para além das cruzes, dos medos, dos pesares, das dúvidas, é que poderemos compreender que o caminho de nossa vida é o da encarnação de Deus em nossa carne.
Finalmente, irmãos e irmãs, a vida é dar um passo após o outro. O passo da fé, o passo da esperança, o passo do amor… Mesmos sem termos momentaneamente acesso à Eucaristia, felizes somos nós se fundamentamos nossas vidas sobre a rocha da Palavra de Deus, se deixamos que tudo em nossas vidas nos advenha, como fez Maria, segunda Sua Palavra. Então, “hoje”, Deus se fará próximo em nossas vidas.
No início desta celebração Eucarística, eu havia vos dito que Maria fez- se interiormente disponível à Palavra de Deus. Ela deixou-se tocar por uma palavra vinda de fora. E agora, espero eu, pudemos conhecer um pouquinho mais deste Mistério que tornou possível a Encarnação do Filho de Deus, que tornou possível a nossa Salvação. Caros irmãos e irmãs, agora é a nossa vez: em tempos de isolamento domiciliar, é mais do que prudente dizer que também para nós, na intimidade de nossas moradas, se não podemos ter acesso à Eucaristia, se não podemos ter acesso aos Sacramentos, temos ainda um tesouro inestimável que é Palavra de Deus: a mesma Palavra que Maria ouviu; a mesma Palavra que, quando acolhida, torna possível a presença divina em nossos corações, torna possível que o Poder do Altíssimo nos cubra com sua sombra, e nos garanta tudo aquilo que necessitamos para nossa salvação.
Amém!
[1] « Pour venir à ce que tu ne sais pas, il te faut aller par où tu ne sais pas ». Saint Jean de la Croix, La Montée du Carmel, I,11,8. Citado por Christine Fontaine em < http://www.dieumaintenant.com/avent4b.html >, acesso a 23/03/2020.
[2] Id.
[3] Ibid.