HOMILIA III DOMINGO do TC-C (Lc 1,1-4;4,14-21)
D. Paulo DOMICIANO, OSB
Toda a liturgia de hoje nos fala da importância da Palavra de Deus na vida da comunidade dos fiéis; fala da potência desta Palavra que tudo cria e transforma e que é dirigida a nós, “hoje”. Este Domingo também celebramos o Domingo da Palavra, instituído pelo papa Francisco em 2019, que nos convida a verificar qual o lugar que as Escrituras ocupam em nossa vida e em nossa caminhada cristã.
Como sabemos, na celebração eucarística somos nutridos sob duas formas da presença de Cristo, duas mesas: sua Palavra e seu Corpo e Sangue. Estes dois modos de Cristo se oferecer a nós em alimento são indissociáveis. Ouvir, meditar e celebrar a Palavra é um prelúdio indispensável à participação do banquete eucarístico. Para além da liturgia, a Palavra nos acompanha em nossa vida cotidiana a partir de nossa oração pessoal, onde se estabelece aquele diálogo constante entre Deus e seu povo.
Curiosamente, o Evangelho de hoje coloca juntos dois trechos do São Lucas. O primeiro é o prólogo do seu Evangelho, os versículos 1-4 do primeiro capítulo. Depois temos os versículos 14-21 do capítulo 4, que pode ser considerado como o prólogo ou a introdução do ministério de Jesus, após os longos anos escondidos de sua juventude. De certo modo, o prólogo ou o início de uma obra literária, musical ou teatral, contém em si, em potência, tudo o que encontraremos a seguir. O prólogo sintetiza em si toda a riqueza e dinâmica do que se segue. Por isso devemos ler com atenção os sinais apresentados por Lucas no início do caminho de Jesus entre nós e que se encontra com o nosso caminho na história.
Lucas nos ensina que antes de tudo é preciso fazer “um estudo cuidadoso” dos acontecimentos divinos para captar o que nos é transmitido pelas “testemunhas oculares” e pelos “ministros da Palavra” (Lc 4,2). Somente com este aprendizado adquirido pela leitura e interpretação cuidadosa, através do contato íntimo e dedicado com a Escritura e o testemunho de fé daqueles que nos precederam no caminho, poderemos acolher de modo eficaz a força da Palavra que o Verbo de Deus nos dirige no “hoje” (4,21) de nossa história.
Se o Evangelho nos fala do início da pregação de Jesus, na primeira leitura temos o relato de um “re-início”; encontramos o povo com a intenção de recomeçar seu relacionamento com Deus após a provação purificadora do exílio na Babilônia. Se os começos são difíceis, o recomeço pode ser ainda mais desafiador. O povo perdeu a capacidade de compreender as Escrituras por causa da língua, por causa dos costumes e das tradições perdidas. Agora é necessário traduzir o texto hebraico para o aramaico porque muitos perderam o contato com a língua antiga e interpretá-lo para o povo. Ler, traduzir e atualizar o texto da Palavra é o trabalho perene da comunidade dos fiéis, é o que todo israelita piedoso é iniciado desde a mais tenra idade, e é o que o Senhor Jesus faz como membro efetivo da comunidade na sinagoga de Nazaré.
Essa também é a tarefa da Igreja, ainda hoje e até o retorno de seu Senhor: ler e traduzir para a linguagem das pessoas de hoje, a partir de suas alegrias e tristezas, esperanças e ansiedades, a fim de atualizar a mensagem não de forma teórica, mas de forma existencial. Somente assim será possível que todos encontrem e amem seu lugar no único “corpo” (1Cor 12,14) de Cristo que é a Igreja, cada um contribuindo com seus talentos e capacidades na edificação deste corpo, como nos exorta S. Paulo na segunda leitura.
Não nos enganemos, irmãos, para sermos cristãos precisamos enfrentar pacientemente o esforço de ouvir a Palavra contida nas Escrituras, fazendo aquele trabalho espiritual que abre poços de água viva na terra de nosso coração. Para iniciar essa jornada de escuta e salvação, não são necessários muitos requisitos e preparo. Tudo o que é necessário é a humildade de reconhecer que somos pobres e necessitados, e que simplesmente não existe um momento melhor do que hoje para iniciarmos essa busca. O mesmo Espírito que um dia ungiu o Senhor Jesus como profeta da salvação, como Ele anuncia no Evangelho quando lê o profeta Isaías, também repousa sobre nós hoje, para nos ajudar a responder com alegria e juntos à voz de Deus, nosso Pai.