HOMILIA 2º DOMINGO DA QUARESMA – ANO C
TRANSFIGURAÇÃO (Lc 9,28b-36)
Dom Paulo DOMICIANO, OSB
No primeiro domingo da Quaresma contemplamos Jesus, guiado pelo Espírito, entrando no deserto e sendo tentado pelo demônio. A Igreja, como vimos, nos convida a entrar nesse deserto e atravessá-lo durante os quarenta dias, acompanhados por Jesus.
O segundo domingo da quaresma, tradicionalmente chamado de Domingo da Transfiguração, nos coloca justamente no polo oposto àquele do primeiro domingo, dedicado à tentação de Jesus no deserto. Passamos do abismo de pedras ao monte da luz; do combate na tentação à transfiguração. Assim, estes dois primeiros domingos da quaresma nos oferecem uma síntese do nosso percurso espiritual, que consiste em evangelizar as zonas de sombra e de dureza presentes em nossa vida e em liberar toda a luz escondida dentro de nós. Lembremos que, como nos declara Jesus, somos a luz do mundo.
Nosso anseio mais profundo nesta caminhada é encontrar a face luminosa do Senhor, como uma criança que busca a face de seus pais no meio de uma multidão de desconhecidos, no meio de uma situação de perigo, como cantamos na antífona e entrada e no Salmo responsorial, com o Salmo 26; ao encontrar o rosto conhecido, a criança sente-se segura, encontra a si mesma. Contemplando a face luminosa de Jesus somos transfigurados e a luz em nós escondida se manifesta. É no contato com esta luz transformadora que nosso pobre corpo, ou seja, que todo o nossos ser, se torna semelhante ao Dele, como diz São Paulo na segunda leitura (cf. Fl 3,21).
Aquele que se decidiu entrar com Jesus nessa aventura através do deserto é chamado hoje, pela liturgia, assim como os três discípulos – Pedro, Tiago e João – a fazer uma escalada. Subir a montanha, na tradição espiritual, tem esse mesmo sentido de purificação simbolizado pelo deserto. Seja em uma viagem através do deserto, ou a subida de uma montanha, precisamos abandonar tudo o que não é essencial, caso contrário, não é possível progredir na caminhada.
Assim, a liturgia e hoje nos convida a duas coisas: à desinstalação de nosso conforto e comodismo, e ao desapego de tudo aquilo que nos pesa e nos impede de caminhar e buscar a face de Deus.
Uma coisa está ligada à outra, pois o que nos mantem instalados em uma falsa sensação de segurança e conforto, na realidade, é aquilo que nos prende e nos pesa, impedindo o nosso progresso humano e espiritual. À medida que vamos nos livrando desses pesos, nos tornamos mais leves e livres e nos sentimos confiantes para subir com Cristo o Monte da Transfiguração.
Hoje devemos aceitar a pergunta: O que me prende e impede de seguir com mais radicalidade a Cristo? Do que estou sobrecarregado, o que me pesa sobre os ombros, dificultando ou mesmo impedindo a minha caminhada?
Nesta viagem só existe um caminho possível: aquele trilhado pelo próprio Jesus, que é a via do despojamento, a via da cruz. Ao longo do caminho precisamos ir nos despojando de tudo o que não é essencial… tudo aquilo que fomos acumulando e que tantas vezes ocuparam até mesmo o lugar de Deus. Não me refiro apenas a coisas negativas, como nossos pecados, nossos vícios e apegos, mas também coisas, que em si, são positivas e belas, mas que permitimos que ocupassem um lugar indevido, um lugar que só pertence a Deus.
A consequência do despojamento exigido pela subida é a contemplação de uma nova luz. No alto do monte Jesus é transfigurado, mas tal transfiguração não acontece somente nele, diria que acontece sobretudo nos discípulos… Na verdade são os olhos dos discípulos que se abrem e se tornam capazes de ver, de contemplar o Senhor em seu esplendor. Eles podem ver, como num flash, a realidade mais íntima da natureza divina de Jesus, o esplendor que se manifestará depois da cruz e da morte e que se destina a cada discípulo que, por sua vez, aceitar tomar a sua cruz e o seguir.
Mas como disse, a transfiguração dos discípulos acontece como um flash e não está completa. Eles ainda não entendem bem essa dinâmica de transformação proposta por Jesus, que passa inevitavelmente pelo caminho do despojamento da cruz. Por isso, da nuvem que os cobre, símbolo do Espírito, a voz do Pai se faz ouvir: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”. Esta é a direção: o processo de transfiguração, de conversão, na vida dos discípulos, depende da escuta atenta da Palavra do Filho. E assim, de flash e flash, ou “de glória em glória”, como diz São Paulo, também nós vamos sendo iluminados e transfigurados (cf. IICor 3,18).
A busca pela Palavra de Deus é um exercício fundamental de nossa caminhada quaresmal. É nesse confronto diário com a Escritura que vamos progredindo em nosso processo de desinstalação e de despojamento, de unificação do coração, até chegarmos a viver esta realidade que conclui o episódio do Tabor, que é a meta de nosso itinerário: “Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho”. Renunciando a todo peso inútil, a todo supérfluo, ficamos com o único necessário: “só Jesus”.
Essa é a dinâmica da conversão, a dinâmica do mistério pascal. Caminho de seguimento de Cristo em sua morte, para receber do Espírito vida nova, luz que não se apaga. E hoje, contemplando a face luminosa do Transfigurado, nós já podemos contemplar e viver a Páscoa. Assim, que nosso coração se encha de esperança, de alegria e de gratidão para prosseguirmos o nosso caminho quaresmal de transfiguração. Amém.